A gênese da cultura digital

Se como vimos, as fronteiras da cultura digital são largas, cabe então discutir sua gênese e seus principios de fundação. De maneira simples, podemos dizer que a cultura digital é aquela que acompanha a comunicação mediada por computador. Porém, é preciso tomar um cuidado. Embora a CMC possa ser recorrida até às experiências iniciais que originaram a Arpanet, a rede ancestral da Internet, na década de 60, é preciso ressaltar que somente a partir de uma determinada quantidade de atores conectados é que a rede atinge maturidade para constituir uma nova cultura. Como ressalta Lévy, o ciberespaço é “fruto de um verdadeiro movimento social, com seu grupo líder (a juventude metropolitana escolarizada), suas palavras de ordem (interconexão, criação de comunidades virtuais, inteligência coletiva) e suas aspirações coerentes” [1999: 123].

Por quase duas décadas, todo o aparato que viabiliza a CMC se manteve dentro de centros de pesquisa acadêmicos e militares. É o advento do computador pessoal (PC) que transforma a potência da comunicação mediada por computador. O jornalista Robert Cringley faz um excelente histórico do surgimento do PC em seu livro Accidental Empires [1996]. Cringley relata como um movimento iniciado como hobby, por um pequeno grupo de engenheiros, se transforma em um fenômeno industrial de larga escala.

A cultura digital começa a se engendrar quando o computador deixa de ser exclusivo das redomas assépticas dos centros de processamento de dados (CPD) das grandes empresas, universidades e centros de pesquisa, e se transfere para as mesas de trabalho de milhões de cidadãos anônimos. Ao longo das duas últimas décadas, o PC alastrou-se de maneira contínua, passando a estar presente nos mais diversos ambientes da sociedade moderna. Atingiu os universos profissionais, domésticos, escolares, comerciais e de lazer.

Porém, como comenta George Guilder, ensaísta das revista Forbes, o computador desconectado de uma rede de comunicação pode ser comparado a um fusca no meio da selva fechada. Ele pode ser muito útil, pois nos protege dos bichos e da intempérie, mas não nos leva a lugar nenhum. É na confluência do computador pessoal e da comunicação mediada por computador que encontramos o nascimento da cultura digital. Em seu relato da emergência das comunidades virtuais, Howard Rheingold descreve boa parte dos acontecimentos que delimitam o surgimento desta cultura [1994].

Tanto Rheingold quanto Cringley documentam os primeiros passos desta convergência ao relatar como os engenheiros, usuários dos primeiros PC, criaram os primeiros bulletin board systems (BBS). Animados pelo impulso de compartilhar suas experiências e conhecedores do potencial da CMC, já presente no ambiente acadêmico, eles passam a conectar seus computadores a linhas telefônicas, utilizando aparelhos de modulação / demodulação (modems), o que lhes permitia trocar arquivos com computadores distantes também conectados a linhas telefônicas e modems. Este movimento leva à constituição de centros agregadores, as BBS que, funcionando como repositório de arquivos e mensagens, passam a mediar a comunicação entre vários usuários equipados com PC e modem.

O impulso que provoca a criação dos BBS evolui para uma diversidade de formatos durante a década de 1980. A mais citada das comunidades virtuais, a The Well, nasce em 1985. Neste período, proliferam também os Usenet groups, o Internet Relay Chat (IRC) e os multi-user domains (MUD). Porém, é o advento da WWW que opera a massificação da CMC no início da década de 1990. A cultura digital é certamente anterior a WWW, mas não há como negar que a Web seja central ao fenômeno, visto que a popularização aumenta a relevância de uma cultura.