Elasticidades e inelasticidades do tempo nas práticas do digital
O texto abaixo correponde a palestra proferida no dia 30 de outubro de 2012 durante o Colóquio "O Tempo das Redes" promovido pelo Grupo de Pesquisa Sociotramas sob a coordenação da Professora Lucia Santaella.
Senhoras e senhores, colegas do grupo de pesquisa Sociotramas, Lucia Santaella, a cuja liderança devemos não só este evento como também o grupo, começo por agradecer antecipadamente e de maneira encarecida a atenção que vocês pretendem me dedicar pelos próximos 20 minutos. Atenção é de fato algo importante para minha participação no evento o “Tempo das Redes”. É um conceito fundamental da minha abordagem.
Será que eu tenho a atenção de vocês? Há alguns anos atrás esta pergunta talvez tivesse apenas a intenção de despertar algum elemento ressonante da platéia. Mas nos dias de hoje, esta questão corresponde a um desafio ainda maior, pois a atenção de todos nós, cidadãos conectados do mundo, está sendo disputada o todo tempo.
Estou falando, claro, de nossos dispositivos móveis, smartphones, tablets, laptops, suas redes sem fio, 3G, wi-fi, e os emails, mensagens de texto, tweets, notificações de Facebook, alertas de jogos, com os quais invadem qualquer contexto sem a menor cerimônia. Ou seja esta disputa constante por nossa atenção ocorre aqui nesta palestra, assim como ocorre em um evento social, uma reunião de trabalho ou no trânsito. Além disto, também temos a disposição toda a riqueza de conteúdo da web, que senão nos interrompe, abre-se à nossa curiosidade como foco de inesgotável atenção.
Mas a atenção individual de cada ser humano é um bem finito, certamente inferior as 24 horas do dia. Embora estudos demonstrem ser possível manter algum grau de atenção durante o sono, ainda nos salvam momentos de distração. Isto porque, via de regra, aplicamos nossa atenção de maneira discricionária, diríamos naquilo que nos interessa.
Vamos fazer um exercício rápido. Por alguns momentos, por favor, esqueçam os laptops, blocos de notas, celulares e companheiros próximos. Fechem os olhos, ou não, e imaginem uma semana em uma cabana longínqua sem acesso a qualquer mídia ou meio de transporte.
Como seria alterada a sua percepção do tempo? como seria aplicada sua atenção? e porque alguns idealizam esta situação em um sonho de liberdade? ansiedade gerada pelo excesso de informação?
Alguns vão concordar com a idéia. Mas antes de cairmos em tentações utópicas ou distópicas, vale considerar a ausência do novo. Em Fedro, Platão descreve os argumentos de Sócrates contra a escrita: coloca em risco a memória, não é capaz de transmitir a experiência direta e empobrece o aprendizado pois não viabiliza o diálogo. Sócrates defendia a oralidade.
A pesquisadora Ann Blair, citada por Howard Rheingold em seu último título Net Smart: How to Thrive Online (algo como “Truques da Net: Como florescer Online”?), descreve as preocupações e as estratégias em torno do information overload entre os Séculos XVI e XVIII. Ela narra como o discurso de Diderot e os enciclopedistas era motivado pela percepção de que a informação em excesso impediria o aprendizado.
Ao longo história, o ser humano foi construindo diversos mecanismos para lidar com o excesso de informação, são as tecnologias da inteligência narradas por Pierre Levy. A avalanche da mídia impressa, preocupação de nossos antepassados, levou aos processos de edição, revisão por pares, revistas literárias, indexes e jornais acadêmicos. Além de ser responsável pela especialização das ciências. Estas respostas nós permitem enfrentar a quantidade de livros editada hoje no mundo sem sobressaltos ou angústias.
O digital ao contrário nos angustia. Para uma parcela razoável da população conectada, a percepção da informação em excesso é um fato consumado. Parece não haver escapatória. Pior, acaba por condicionar uma atenção fragmentada que alguns acreditam inviabilizar a prática de uma leitura aprofundada. Ou seja, a atenção fragmentada não se remenda.
Como Rheingold, embora discorde da conclusão, concordo com o diagnóstico. A atenção fragmentada é um fator condicionante de nossa cultura digital. Altera nossa percepção do tempo presente. Complementa a aceleração do tempo já discutida por Paul Virilio.
Não estamos mais no tempo da rapidez das vias, das imposições do relógio e da informação serializada. Estamos no mundo da resposta imediata, da conexão constante e da informação em tempo real. A atenção daqueles que estão imersos nesta cultura digital é requisitada o tempo todo. Os contextos previamente separados da vida, o trabalho, a família, os círculos sociais, de aprendizado, todos colapsam ou colidem (como prefere Danah Boyd, também citada por Rheingold), ou seja, acontecem ao mesmo tempo.
O acesso constante a informações diversas e diferentes contextos altera nossa fruição do presente. O digital manipula outras dimensões do tempo. Sua capacidade de permanências altera as possibilidades da memória e nossa apreensão do passado. Sua capacidade de simulação, permite a programação de resultados futuros. Mas se nos concentrarmos na idéia de como o tempo passa, não há dúvida de que estamos no terreno da atenção. É ela que diz quando o tempo passa rápido ou devagar.
É neste sentido que o tempo apresenta elasticidades e inelasticidades. Fora dos segundos contados pelo relógio, o tempo presente é percepção. Se somos produtivos durante um período, o tempo parece elástico. Mas se procrastinarmos, as tarefas se acumulam e os prazos se aproximam, o tempo demonstra uma inelasticidade impiedosa. A atenção é o substrato básico de nossa produtividade.
O digital interpõe dois desafios a nossa atenção: a facilidade no acúmulo e o imediatismo do desvio. Diligentes aplicativos acumulam mensagens de email, SMS, Twitter, Facebook, aplicativos e jogos diversos que, se não lidas, ainda chamam a nossa atenção por não lhes ter dado atenção devida. Estes mecanismos de interatividade produzem meios de permanência que garantem eficiência ao diálogo assíncrono e semi-engajado.
O desvio é a possibilidade permanente de uma nova busca, uma consulta a fórum de discussão, um email para um possível especialista. Por enquanto, deixemos de lado o ruído, pois quase sempre há inúmeras oportunidades de desvio da atenção que atendem a curiosidades legítimas, quiçá até mesmo produtivas. A inesgotável web, somam-se a presenças ininterrupta das mídias sociais, onde há sempre alguém para começar uma conversa.
Nós controlamos a nossa própria atenção?
A resposta parece ser sim. Tanto no senso comum: eu presto atenção para o que eu quero; quanto do ponto de vista da ciência, existem estudos e métodos para o treinamento da atenção. Rheingold recorre a estes estudos para apresentar estratégias para o controle da atenção. Uma das cinco capacitações digitais (literacies) que ele apresenta em seu livro.
Antes de prosseguir, é importante notar que o que motiva a Howard Rheingold, motiva também a minha fala hoje. As mídias sociais são meios sócio técnicos cujo formato é resultado do diálogo entre as disponibilidades da tecnologias (affordances) e as práticas de seus usuários. Usuários mais informados sobre as possibilidades do meio digital, seus riscos e seus atalhos tendem a melhorar o próprio meio por retro alimentação.
Aconselho a todos a leitura do livro Net Smarts, mas vou me concentrar em apenas duas das estratégias apresentadas para o controle da atenção: a respiração e a intenção. O objetivo hoje é chegar examinar o universo das redes sociais com mais detalhe.
Prestar atenção a sua própria respiração é a maneira mais rápida e direta de se tornar consciente sobre o foco da sua atenção e redireciona-la. A respiração é a base de qualquer prática de meditação. Trata-se de uma estratégia simples mas eficaz. Pode parecer primária, mas não é fácil colocar em prática. Pense em todos os momentos em que sua atenção divaga e você perde “foco”. Você conseguiria criar um rotina de pausas para prestar atenção na sua respiração e re-orientar sua atenção? Americano, Howard propõe até intervalos, exercícios e métodos para manter o “foco”.
Mais alinhado com a estereotípica falta de disciplina nacional e com a minha própria, acho mais apropriado investir no principal elemento condicionador do uso dito produtivo de nossa atenção: a intenção. A pergunta básica é a todo momento estou empregando minha atenção de acordo com minha intenção mais produtiva, aquela a qual conscientemente deveria me dedicar.
Se podemos entender o uso apropriado de uma mídia do ponto de vista do próprio sujeito, agente no processo de comunicação. Desta perspectiva individual, podemos traçar práticas ajustáveis a objetivos válidos para diferentes contextos e indivíduos. As intenções são diversas em natureza, mas os desafios a primazia de uma intenção são os mesmos. São as tentações constantes à nossa atenção, atualmente amplificadas pela cultura digital e suas conexões numerosas e constantes.
Antes de pensar como evitar os ruídos sem perder possíveis informações valiosas, tomemos um momento para pensar na idéia do comportamento multi-tarefa.
Segundo os pesquisadores citados por Rheingold, o multitaksing não existe. O que ocorre é alteração rápida entre tarefas e esta mudança de foco da atenção tem custos. As pessoas que demonstram uma capacidade de atuação multi-tarefa elevada são mais eficientes neste intercâmbio. Seus custos são menores, mas existem e não escapam da redução de produtividade inerente quando o tarefas sem encadeadas em trocas demasiado rápidas.
Seguindo esta linha é que Maryane Wolf conclui em seu importante livro Proust and the Squid: the Science of the Reading Brain (ou “Proust e a Lula: a Ciência do Cérebro que Lê”) que nossas práticas atuais de consumo da mídia de digital estão diminuindo nossa capacidade de leitura profunda, reflexiva. Rheingold também cita a autora, mas ao contrário do partido tomado por críticos como Nicholas Carr, Andrew Keen e Jaron Lanier, não enxerga a proliferação das mídias sociais como o mal a ser combatido, determinando quarentenas ou “curas”de um vício nocivo. Como Maryane Wolf, Howard acredita que atenção pode e deve ser treinada.
Trazendo a questão da intenção às redes sociais, temos uma pergunta chave: porque você utiliza as redes sociais que utiliza, qual sua intenção?
Caso sua resposta seja apenas para saber dos amigos. A questão passa a ser quando como e onde esta intenção deve ter privilégio sobre a sua atenção. Dado que certamente vocês tem ou deveria ter outras preocupações além do contato com seu círculo social. Já se a resposta inclui, como a minha, também encontrar possíveis dicas para conhecimentos valiosos ao meu trabalho e estudo, as possibilidade de emprego da atenção se tornam mais intrincadas.
As disponibilidades comunicacionais das redes sociais apresentam alguns novos atributos: as mensagens são persistentes, podem ser replicadas, sua distribuição escala sem dificuldades, e seus conteúdos são pesquisáveis. São estas quatro características que Danah Boyd ressalta para concluir que os contextos colidem (como já vimos), as audiências se tornam invisíveis e os âmbitos do público e do privado convergem.
Claro que estas três dinâmicas tem diversas outras consequências, mas para o controle da atenção trazem o desafio adicional da não separação dos espaços de acordo com contextos que nos disciplinam. Nosso uso solitário e silencioso diminui as possíveis sanções sociais impostas à falta de atenção. Amplificados pela conexão seja constante seja frequente, as redes produzem informação de maneira ininterrupta colapsando (figura que prefiro a ideia da colisão) os contextos de diferentes pessoas, amigos e conhecidos em diferentes graus e vindos de diferentes horizontes da vida pessoal.
Completa este quadro a ideia do ruído: aquilo que não merece nossa atenção. A polifonia das redes sociais é a receita para um nível máximo de ruído. Como manter uma atenção direcionada quando se lê um feed de notícias no Facebook? Além do exercício básico de alinhamento da atenção à intenção, a resposta que apresento volta às disponibilidades da tecnologia, suas affordances.
De maneira resumida diria que as redes sociais permitem três táticas complementares: (1) a sintonia dos conteúdos; (2) o controle dos vazamentos; e (3) rotinas de consumo destas mídias.
As tecnologias das redes sociais permitem sintonizar conteúdos em vários níveis. O primeiro e mais óbvio está na própria escolha dos nossos ditos amigos em redes sociais. Claramente, se temos objetivos definidos para o uso das redes sociais, podemos selecionar quem deve participar de nossas redes e por qual motivo acolhemos cada potencial de interação criado.
De maneira mais interessante, os aplicativos permitem descartar sem excluir e controlar quais mensagens serão apresentadas com maior destaque e aqui o destaque é um mecanismo da atenção. No Facebook por exemplo, (mostrar página) é possível ocultar ou seguir post e pessoas, (mostrar página) administrar quais anúncios queremos ver. Além disto, é bom saber que nossas interações com o aplicativo incluem parâmetros a partir dos quais os algoritmos selecionam quais notícias e de quais “amigos” serão publicadas em nossos feed de notícias, o principal veículo de ruídos e informações valiosas veiculadas no Facebook.
Ou seja, dá próxima vez que você achar um gatinho bonitinho pense duas vezes antes de apertar o botão curtir, pois gatinhos podem açambarcar seu Facebook. Também é bom pensar duas vezes antes de comentar uma mensagem de amigo chato e prolixo, ou controlar o impulso de compartilhar um piada de gosto duvidoso. Todas as suas ações informam os computadores do Facebook sobre o seu comportamento e permitem inferências mais ou menos certas sobre sua atenção.
O segundo plano a ser considerado nesta administração da atenção em redes sociais, são os vazamentos que suas tecnologias permitem para além dos limites dos aplicativos que lhes dão vida. São as notificações e avisos gerados por estas redes enviados como emails, mensagens de textos ou diferentes formatos de alertas em nossos dispositivos móveis ou não. São estes os eventos que nos interrompem a torto e direito. Aqui é ainda mais importante perceber as possibilidades do meio técnico: (mostrar página) hoje há quase noventa opções diferentes para definir o que deve ou não ser notificado por seu email ou alertado em seus dispositivos móveis.
Mas antes de mais nada é importante ressaltar que todas estas telas e disponibilidades técnicas do Facebook são objeto de alterações constantes. Algumas preferências e funcionalidades mudam condições de privacidade, estas ganham mais publicidade e algumas acabam em grandes embroglios. Modificações nos algoritmos que selecionam os conteúdos apresentados são muito menos visíveis e merecem atenção muito menor da mídia.
A administração desta atenção ainda pode ser complementada por outros mecanismos de controle do que deve ou ser trazido a sua atenção. Os sistemas de emails permitem direcionar remetentes, assuntos ou grupos para pastas específicas que longe de nossa atenção dispersa, são recolhidos para momentos de atenção específica. Os sistemas operacionais Android e iOS, do Google e da Apple, apresentam telas para o controle de preferências que permitem definir o que nos interrompe o não e que formato de alerta estas interrupções tomam.
O terceira das estratégias é o estabelecimento de rotinas. Ao fim e ao cabo, nossas práticas determinam as elasticidades e inelasticidades do tempo. A capacidade de estender o tempo é um efeito destas práticas.
Todo bom leitor de emails tem seu método. A maior parte lê tudo de maneira imediata ou quase. Respostas rápidas devem ser dadas rapidamente. Tem uma forma de separar os emails que merecem maior atenção na resposta.
A navegação na web cria montanhas de links sobre os quais temos maior ou menor interesse, e que ao final terão maior ou menor utilidade, vis a vis a intenção de nossa atenção. Rheingold descreve diversos métodos e ferramentas digitais para a seleção da relevância e sua visualização.
Nas redes sociais, devemos aplicar a ideia de regimes. Para não deixar nossa atenção a mercê da polifonia das redes sociais, é preciso dar limites a nossa prática. De maneira mais básica, é preciso determinar cargas de tempo e periodicidades. Caso o exame das suas intenções individuais determine que as redes sociais tem um papel produtivo na sua vida, aconselho a criação de um regime particular capaz de dar vazão apropriada ao volume da sua rede social e os conteúdos que esta produz.
Vale aqui lembrar, as redes sociais podem ser facilmente tachadas de frivolidades, meras distrações incapazes de produção de conhecimentos ou práticas valiosas. Mas este preconceito morre rapidamente quando lembramos da Primavera Árabe e o papel destas redes nestes eventos revolucionários. Ou quando entendemos a dimensão do poder de influência de uma conta de Twitter com milhões de seguidores.
Encerro aqui minha exposição, propondo a continuidade do caminho intelectual apresentado na extensão da ideia de regimes para o consumo de mídias digitais para seus diversas mecanismos, não apenas as redes. O aprimoramento de nossas práticas digitais como campo aberto não só aberto a experimentação, como determinável por estas mesmas.
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