Experimentações premonitórias do discurso pós-moderno

Assim como as manifestações da cultura digital excedem o suporte digital, suas formas também se anteciparam no tempo. Janet Murray, na sua brilhante exploração sobre a narrativa digital, Hamet on the Holodeck – The Future of Narrative in Cyberspace [1997], traça as origens do discurso digital em diversas obras culturais que antecedem a formação de uma cultura digital, aceitando-se que esta só se faça presente quando a comunicação mediada por computador passa a ocupar um papel relevante na experiência humana, como veremos a seguir.

A professora do MIT, discutindo o conto “O Jardim dos Caminhos que Bifurcam” de Borges e o filme “Rashomon” de Kurosawa, entre outros exemplos, aponta para a existência de um tipo de estrutura narrativa a qual dá o nome de “estórias multiformes”. Tratam-se de tramas que se desenrolam em múltiplas possibilidades, seja criando realidades simultâneas distintas, seja narrando o mesmo enredo a partir de diferentes pontos de vista. A autora sustenta que esta forma da narrativa trabalha como uma antecipação das possibilidades da mídia digital. O mesmo movimento também está presente na arte que demanda uma audiência ativa, como as instalações e performances, o teatro com a participação do público ou até mesmo a literatura, quando o autor reconhece diretamente a existência do leitor, passando a travar com este um diálogo criativo, ao qual transfere parte da responsabilidade da criação do contexto narrativo. [Murray,1997:Chapter 2]

Richard Lanham, em seu estudo sobre a “palavra eletrônica”, afirma que as tecnologias digitais trabalham no sentido da suplantação de várias barreiras da linguagem que as vanguardas do começo do século XX tentaram ultrapassar [1993]. Lévy, em Cybercultura, argumenta que a “fábula do progresso linear e garantido” [1999:120], que a cultura digital vem deslocar, já havia sido objeto de contestação das vanguardas e, citando Jean-François Lyotard, afirma que a pós-modernidade já havia proclamado o fim das grandes narrativas totalizantes, antes da cultura digital. [1999: Capítulo VI]

O Professor Philadelfo Menezes, também, defendia este caráter antecipador do discurso das vanguardas, quando identificava nestas os primeiros passos no sentido da desconstrução da lógica linear da narrativa [1996]. Neste sentido, citava tanto a narrativa em fluxo de consciência, cujo monumental exemplo de Ulysses, de James Joyce é amplamente citado por Steven Johnson [2001], quanto as experimentações sintáticas e estilísticas da poesia concreta, do Jogo de Amarelinha, de Cortazar e das fusões multimidiáticas da videoarte, largamente documentadas por Artur Matuck em seu livro O Potencial Dialógico da Televisão [1995].

Algumas outras produções culturais também antecipam a cultura digital, embora já possam ser, temporalmente, enquadradas em seus primórdios. Certamente, Neuromancer de Wiliiam Gibson é o exemplo mais clássico desta antecipação. Gibson não só cunha o termo ciberespaço neste volume, como também o povoa com suas primeiras imagens e mitos. Suas metáforas do ciberespaço, assim como as interfaces que descreve, permanecem desafiadoras até hoje. O holodeck, que Janet Murray coloca no título de seu livro, referencia o seriado Guerra nas Estrelas: Voyager, a quarta versão do popular programa de televisão. O holodeck é um aparelho de projeção holográfica utilizado para “contar histórias” em alguns episódios da série. Murray apresenta o holodeck como uma antecipação do caráter imersivo da narrativa digital [1997: Chapter 1 e Chapter 4].