As bases da vida comunitária no ciberespaço
O que caracteriza uma comunidade virtual? Certamente, não basta que um grupo de pessoas passe a se comunicar através de CMC para que se forme uma comunidade no ciberespaço. Rheingold elenca três fatores que estabelecem as bases da formação comunitária: o estabelecimento de normas de conduta que regem as interações socias entre seus participantes; a comunhão sobre um conjunto de valores que serve aos objetivos do grupo; e a sensação emocional de pertencimento que leva os membros de uma comunidade a identificarem-se como tal. [1994] Em seu relato acerca da Well, o autor demonstra como a interação continuada, nos espaços vivenciados conjuntamente das conferências eletrônicas, permite estabelecer as normas de conduta, convergir os valores e criar a história coletiva que constrói o sensação de pertencimento.
As normas de conduta fazem-se presentes na quase totalidade dos ambientes do ciberespaço que comportam a interatividade muitos-muitos. As regras são por vezes escritas e organizadas em textos específicos. Muitos newsgroups e mailing list produzem arquivos contendo perguntas e respostas (FAQ) para informar aos novos membros e lembrar aos antigos quais comportamentos são socialmente aceitos. Como vimos, uma das preocupações constantes é a manutenção do objetivo do espaço compartilhado, ou seja, um newsgroup dedicado à arte celta, não é espaço adequado para uma discussão do atual estado do futebol britânico. No entanto, estes limites são bastante fluídos. Em muitos grupos, o bate papo descompromissado é tolerado, desde que não tome de assalto o espaço interativo, obrigando seus participantes a seguir longas séries de mensagens fora do tópico de discussão a que se dedicam.
As normas também procuram controlar o tom das mensagens, uma vez que a presença descorporificada dos agentes dá margem ao abuso da linguagem agressiva. A maior parte dos ambientes de interação muitos-muitos comporta regras próprias a esse respeito, mas o espírito geral é capturado por esta frase largamente utilizada pelos antigos sysops (system operators) da Fidonet: “thou shalt not offend; thou shalt not be easely offended.” [Rheingold 1994:137] Porém, o que pode ser considerado ofensivo é claramente variado. Um dos membros mais notórios da Well, Tom Mandel, contrariado em sua relação amorosa com uma outra participante, iniciou uma discussão cujo título era “An Expedition into Nana's Cunt”. A expedição à vagina de sua antiga namorada, historiada em ricos e agressivos detalhes, foi estabelecida dentro da conferência “Weird”, cuja proposição era permitir conversações sobre temas estranhos, sem qualquer censura. Como tal, a discussão não foi censurada, embora tenha provocado inúmeras reações, discussões e protestos. Os administradores da Well chegaram a perguntar à própria Nana, se ela desejava que a discussão fosse interrompida, o que foi declinado em nome da ética de liberdade de expressão regente. A expedição durou apenas três dias, pois, embora não tenha havido censura coercitiva, vários membros da comunidade começaram a bombardear a discussão com uma série de longas e irrelevantes mensagens, o que levou, por fim, Mandel interrompê-la. [Hafner 1997]
Além de normas e condutas para coibir a agressividade, as comunidades virtuais estabelecem procedimentos para tornar a comunicação mais eficiente. Em conferências eletrônicas, é comum haver regras para inibir o envio duplicado de uma mensagem, mesmo quando esta abrange temas discutidos em mais de um tópico. São utilizadas soluções como iniciar uma nova discussão que comporte os temas tratados, avisar os participantes sobre as mensagens relevantes enviada a outro item ou, até, o envio duplicado, com o devido alerta sobre o fato. As convenções são, normalmente, ricas no espaço das comunidades virtuais. Criam-se expressões específicas e comportamentos valorizados. Na comunidade Brainstorms, há um item dedicado à manutenção de um glossário, contendo termos utilizados com um significado específico, neologismos ali nascidos e um extenso conjunto de abreviações. O referênciamento a mensagens anteriores também respeita algumas possibilidades de sinalização gráfica, de acordo com os usos e costumes estabelecidos. Por vezes, os textos são citados entre aspas ou grafados em itálico. Em chats, é comum haver referência a mensagens, informando o nome do participante e a hora da mensagem: “não concordo com fulano em 12:55”.
As normas, obviamente, refletem valores éticos específicos que nascem da convivência e da construção particular do espaço comunitário. Recentemente, em uma discussão sobre um tema da atualidade, presenciei um confronto entre dois membros da Brainstorms que solicitou a interferência do moderador, cujo papel é discutido a seguir). Seguindo a ética vigente, os participantes em conflito eram instados a restringir-se à discussão do tópico em questão, refreando comentários sobre a individualidade alheia. A esta regra geral sobre a convivência, apunha-se um segundo pedido, este específico das regras de uma das conferências da Brainstorms. Um dos membros engajados no conflito possui uma “Life Story”, um relato pessoal de sua vida diária que é hospedado em uma conferência, especificamente criada para este fim. Nela, um membro da comunidade envia mensagens que constituem um diário particular que é comentado por outros membros, com quem cria vínculos de amizade, em função de incentivos, sugestões e críticas que recebe. Segundo a ética específica deste espaço, as life stories são propriedade das pessoas a cuja vida se referem e, portanto, as mensagens ali enviadas não podem ser referenciadas em outras discussões, dentro da Brasinstorms. Desavisado, um dos membros beligerantes havia baseado boa parte da sua contestação nas idéias defendidas pelo outro nos relatos pessoais publicados em seu “Life Story”.
Esta regra particular, na verdade, reflete uma regra geral desta comunidade. YOYOW, “you own your own words”: é uma regra que descende da Well que é, fortemente, aplicada na Brainstorms. Ela deve ser entendida em dois sentidos, o primeiro e mais importante é que o conteúdo das mensagens enviadas dentro dos limites da comunidade não deve ser repetido fora destes mesmos limites, sem a autorização expressa de quem as enviou. Boa parte dos membros explicita sua posição particular, em relação a esta regra em suas apresentações pessoais, dizendo que suas palavras podem ser repetidas sem cerimônia; utilizadas livremente, desde que não haja vantagem financeira para quem as repete; citadas desde que devidamente reconhecidas como suas e linkadas a seu site; ou somente mediante consulta específica e direta através de email. O segundo sentido da norma de propriedade do discurso no âmbito da comunidade é que o usuário pode manipular aquilo que escreveu, da forma que melhor entender, pode mudar um comentário refletindo sua mudança de opinião, pode adendar uma mensagem ou, até mesmo, apagar o que escreveu. No entanto, este comportamento é mal visto, já que pode alterar ou tornar sem sentido o fluxo de uma conversa expressa pela seqüência das mensagens que compõe a discussão coletiva. É convencionado que as alterações, normalmente, para corrigir erros de escrita, adicionar novos fatos ou apagar mensagens duplicadas, sejam devidamente assinaladas com tal por um breve alerta colocado entre colchetes.
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