A natureza transformadora da interface digital

Em última instância, o ciberespaço é constituido de pulsos elétricos que transitam através de cabos telefônicos, fibra óticas, circuitos integrados e processadores. Como não temos condições de compreender estas informações neste estado, construímos mecanismos adequados a nossos sentidos. As interfaces reproduzem os pulsos eletrônicos na forma de símbolos que somos capazes de interpretar. Elas constituem as portas de entrada e saída do computador. Através delas, capturamos informações armazenadas e transmitidas digitalmente e inserimos as informações que pretendemos digitalizar, armazenar e, posteriormente, transmitir.

A interface se aproxima da linguagem, visto que, também, não temos condições de compreender os pensamentos alheios diretamente das consciências humanas. Inicialmente vou propor que a interface seja uma instância da linguagem que justapõe as linguagens verbal, visual e sonora, condicionando as relações de significação que atuam no meio digital. Sendo a interface digital produto da combinação de várias modalidades perceptivas, seguindo a termologia proposta por Lévy [1999:61-66], ela se compara aos discursos das mídias eletrônicas, porém sua natureza é mais ampla. Enquanto a linguagem televisiva, por exemplo, condiciona uma forma de produção de sentido que envolve a prática de criação de um discurso, assim como condiciona sua recepção, a interface digital condiciona, também, novas formas do diálogo. Portanto, se aproxima do telefone e do rádio, mas seus recursos são muito mais abrangentes que o teclado numérico e o toque de ocupado do primeiro, ou as abreviações e comandos, utilizados em comunicações em canal aberto, do segundo.

No sentido desta complexidade, a interface digital também se apresenta de maneira bastante diversa dentre as experiências midiáticas. No meio digital, a interface exige capacidades de manipulação muito mais abrangentes. A primeira vez que alguém entra em um chat, é necessário dominar uma série de elementos da interface como: aonde clicar para introduzir o texto através do teclado; qual botão usar para enviar o texto; como definir para quem o texto está sendo enviado; além de uma série de alternativas contextuais que permitem enviar um ícone que demonstre uma emoção, definir que sua mensagem deve ser reservada a uma única pessoa da sala de chat ou optar por não receber mensagens vindas de um participante, em particular. Comparemos este ambiente, à interface que devemos dominar para escutar rádio: o dial e o botão de volume. Soma-se a esta constatação o fato de que cada sala de chat apresenta seus elementos de maneira particular e que existe uma série de outros mecanismos de comunicação no ciberespaço com diferentes interfaces.

Neste ponto, temos que retroceder no raciocínio proposto acima, para desfazer a simplificação: a interface digital aproxima-se da linguagem, mas não é linguagem. A linguagem digital é condicionada pelas possibilidades da interface, mas não se confunde com ela. Um texto digital que utiliza links de maneira eficiente, para justapor diversos elementos e permitir uma leitura mais interativa, está tomando proveito da interface para se transformar, mas se constitui linguagem, na medida em que produz significação, enquanto sistema simbólico partilhado pelos agentes do processo de comunicação.

Desta maneira, ao percebermos o papel inovador da interface, não devemos desprezar o potencial da linguagem digital, que, embora incipiente, é bastante transformador. Tomando o exemplo do cinema, podemos dizer que diferentes estilos e diferentes autores requerem diferentes capacidades interpretativas, mas a interface de recepção é basicamente a mesma: a tela grande dentro da sala escura. Não obstante a natureza simples da interface, a linguagem cinematográfica comporta hoje uma complexidade que se apresenta nas opções estéticas de diversos discursos. Porém, isto não foi uma conseqüência imediata do invento dos irmãos Lumière. Os primórdios da televisão são ainda mais ilustrativos do hiato que se impõe entre o desenvolvimento da interface e da linguagem. As primeiras transmissões televisivas, ainda sem levar em conta o potencial cênico do meio, exibiam a filmagem de atores do rádio à frente de microfones. A linguagem digital se encontra neste estágio, sendo que a proficuidade da interface digital constitui ao mesmo tempo um desafio e uma oportunidade. Como comenta Steven Johnson, “a representação de toda essa informação (o ciberespaço) vai exigir uma nova linguagem, tão completa e significativa quanto as grandes narrativas metropolitanas do romance do século XX” [2001:20].

A interface é um objeto de mediação do ciberespaço. Sua natureza é permitir que os atores dos diversos processos de comunicação manipulem os objetos cognitivos que habitam este universo. A interface do browser media a comunicação entre produtor de um site e o internauta. Porém, a mensagem está contida nos elementos de linguagem engendrados pelo produtor, seus textos, imagens, sons. A interface é o mediador que permite que o produtor construa sua mensagem e que o internauta a manipule. Para que uma comunicação se produza, os agentes devem compartilhar um certo nível de compreensão dos mecanismos da interface, da mesma maneira que é necessário que comunguem, minimamente, do mesmo código de linguagem, mesmo porque a linguagem também opera uma mediação na significação entre os agentes.

Porém, enquanto a linguagem carrega a mensagem, a interface condiciona a linguagem. Voltando ao exemplo do cinema, podemos perceber o quanto a evolução de sua interface transformou seu discurso. Do advento do cinema falado, às imagens coloridas, e ao contínuo avanço das técnicas de efeitos especiais, a linguagem cinematográfica se transformou profundamente e com ela a capacidade do artista transmitir sua mensagem. De maneira paralela, quando adicionamos ao email, anteriormente restrito ao texto corrido, a capacidade de manipular código HTML (hypertext markup language), com seu potencial de multimodalidade e hipertextualidade, permitimos a criação de mensagens mais complexas, visto que utilizam de maior gama de recursos de linguagens.

Contribui para a dificuldade em definir os limites entre linguagem e interface no ambiente digital, o fato de esta última requerer uma apreensão inicial. A interface precisa ser dominada. Para isto, ela carrega em si um discurso de auto-explicação. Trata-se, em princípio, de um texto repetitivo, visto que não é particular a uma comunicação específica. Funciona para permitir que seu usuário compreenda sua lógica. Este metadiscurso da interface é, obviamente, expresso pelo uso da linguagem. Se em nosso uso cotidiano podemos relevar este texto explicativo, uma vez dominada a interface, nas manifestações da arte digital o exercício de apreensão do objeto artístico implica na leitura do discurso da interface. O artista digital que Lévy identifica como um “engenheiro de mundos”, produz tanto a interface quanto o próprio objeto [1999]. A significação envolve, portanto, a apreensão da interface, assim como do próprio objeto.

Esperamos muitas vezes das artes do virtual um fascínio espetacular, uma compreensão imediata, intuitiva, sem cultura. Como se a novidade do suporte devesse anular a profundeza temporal, a espessura do sentido, a paciência da contemplação e da interpretação. Mas a cibercultura não é, justamente, a civilização do zapping. Antes de encontrar o que procuramos na World Wide Web é preciso aprender a navegar e familiarizar-se com o assunto. Para integrar-se a uma comunidade virtual, é preciso conhecer seus membros e é preciso que eles o reconheçam como um dos seus. As obras e os documentos interativos em geral não fornecem nenhuma informação ou emoção imediatamente. Se não lhes forem feitas perguntas, se não for dedicado um tempo para percorrê-los ou compreendê-los, permanecerão selados. Ocorre o mesmo com as artes do virtual” [Lévy 1999:68-69]

Por outro lado, devo manifestar minha discordância com Steven Johnson quando este pretende “elevar” a interface a uma forma de manifestação artística [2001]. Prefiro dizer que a arte se enriquece por passar a incluir, de forma mais abrangente, as possibilidade de desenvolvimento de sua própria interface. Não há nisto qualquer ineditismo. A praxis da arte digital inclui a construção da interface, da mesma maneira que a poesia concreta inclui a disposição do texto em seu processo de significação; no entanto, a diagramação não se tornou arte por ter sido incluída dentro das possibilidades da criação artística. Vale também lembrar que as artes plásticas, já há muito tempo, realizaram a apropriação da interface em seu universo. As instalações, abandonando uma perspectiva meramente comtemplativa do objeto artístico, há muito passaram a incluir os ambientes e os mecanismos de sua percepção no âmbito do objeto artístico.