O potencial interativo da leitura

Qualquer processo de leitura pressupõe a interatividade do leitor com o escritor através da mediação do texto. O meio digital transforma este campo da interação de maneira bastante significativa, graças à digitalização e seus já discutidos mecanismos característicos: a multimodalidade, o hipertexto e a simulação. Cabe agora discutir como se altera a interatividade do leitor com o texto.

De maneira geral, os textos analógicos, tomados aqui da maneira ampla, abrangendo diferentes formatos que não apenas o texto escrito, conduzem o leitor à produção do sentido, a partir de uma ordem linear previamente determinada pelo autor. É claro que esta tendência que é óbvia no exemplo do livro, é menos presente em uma exposição fotográfica, ou pode ser mesmo evitada em uma instalação pós-moderna. Porém, as possibilidades manipulativas da leitura do objeto análogico são, definitivamente, restritas, quando comparadas com os objetos digitais.

No meio digital, a leitura se abre sobre um novo campo de possibilidades. As diversas seções de um folheto eletrônico não se apresentam por uma seqüência de páginas; transformam-se em uma lista de títulos ou expressões resumos que procuram atrair a atenção do leitor que deverá optar pelo item que mais lhe interessa. É certo que este recurso pode ser comparado a um mero índice eletrônico, no entanto, quando bem construído, o texto digital pode permitir que esta remissão constitua uma multiplicidade de sentidos.

Um objeto digital, como um jogo eletrônico, demonstra, de maneira mais eloquënte, as possibilidades de interatividade da leitura. O jogo Myst, que caracteriza um marco na produção de jogos de aventura, constitui um excelente exemplo. Existe uma história em Myst: uma ilha abandonada em que aconteceu algo misterioso que precisamos desvendar. Porém, a leitura desta história, que inclusive determina o sucesso do jogador, é feita a partir da interação com os múltiplos objetos que o mundo gráfico do jogo nos apresenta. À exceção de um pequeno manual, não há qualquer indicação do caminho a ser seguido na leitura deste objeto digital. Cada leitor / jogador faz o seu percurso, construindo de maneira interativa o sentido do texto escrito pelos criadores do jogo.

Há ainda muito a ser explorado. O fato de que jogos eletrônicos voltados ao público jovem constituam alguns dos exemplos mais ricos das possibilidades desta nova leitura, é bastante ilustrativo. Criadores de jogos estão, por natureza, habituados a planejar interações abertas com um grande espectro de possibilidades, visto que sem isto teríamos jogos monótonos. Porém, em muitas outras escrituras, persiste o desafio de construção de um discurso que se aproprie, por completo, das possibilidades criadoras desta leitura interativa. Janet Murray sustenta essa afirmação em sua análise do encontro da arte da narrativa com o ciberespaço, ao mesmo tempo em que documenta os diversos avanços realizados por pioneiros como Michael Joyce, autor do romance hipertextual Afternoon [1997]. De maneira similar, Steven Johnson recorre ao exemplo da descontinuada revista eletrônica Suck (www.suck.com), para demonstrar quão mais rica pode ser a utilização do recurso do hipertexto para a construção de um discurso intersígnico.

O resto da Web via o hipertexto como um sumário eletrificado, ou um suprimento ‘anabolizado’ de notas de rodapé. Os ‘Sucksters’ o viam como uma maneira de frasear um pensamento.” [2001:99]

Ainda no exemplo dos sites da WWW, é fácil perceber que a escritura continua a ser linear, embora a possibilidade da não linearidade esteja latente na profusão de links utilizados. Por mais que se utilize de links para enriquecer sua mensagem, o autor pretende que seu leitor siga de um paragráfo ao próximo. Os links não constroem uma leitura alternativa; apenas acrescentam uma nova camada refencial explícita, que adiciona sentido ao texto, mas não pertence a ele.

No entanto, é preciso perceber que, mesmo neste estágio embrionário em que se desenvolve uma nova escritura que, efetivamente, se apropria das possibilidades interativas do meio digital, existe um movimento de transferência do pólo da significação da escritura para a leitura. Não quero aqui contradizer os ensinamentos de Umberto Eco de que o leitor sempre foi agente da significação, mas o texto linear permitia ao escritor um maior controle sobre sua mensagem. Com o potencial de interatividade do texto digital, o escritor produz uma obra ainda mais aberta, visto que mais determinada pelas seleções do leitor diante de alternativas explicitas do objeto digital.

Um outro ponto muito importante desta nova leitura é a presença imediata do contexto. O texto impresso se dissocia de seu contexto de produção. Quando lemos um romance de Goethe, não temos presente o conjunto de referências implicado pelo momento histórico em que foi escrito. Desta forma, o texto implica um aparato de interpretação, uma “tecnologia linguística” nas palavras de Lévy [1999:114]. Já o texto digital apresenta a possibilidade de referenciar seu contexto. É possível dar permanência ao debate que envolveu o pensamento do autor na construção do texto. Não se trata apenas de um conjunto de referências que já eram possíveis via notas de rodapé no texto escrito; agora, um emaranhado de links permite que o leitor contextualize o discurso dentro de um momento histórico. Não estamos mais restritos às referências selecionadas pelo autor, mas, a partir da web, é possível absorver o “esprit du temps” que envolve o texto. É claro que permance um esforço de interpretação, mas sendo o texto digital, as conexões são imediatas e o contexto se apresenta por contato.

Tanto Richard Lanham [1993], quanto Pierre Lévy [1999], citando os estudos de Walter Ong sobre a oralidade, percebem neste movimento um retorno às condições que prevalecem no discurso oral. Nas culturas anteriores ao texto impresso, o contexto era presente na figura do narrador. O trovador carregava consigo o contexto daquilo que interpretava em seu discurso. Sua audiência tinha acesso imediato a suas referências, já que escritura e leitura coexistiam. No ciberespaço, o tempo se faz permanente, através das referências que são persistidas em bancos de dados, as memórias eletrônicas da cultura digital.

Uma última particulariedade da interatividade da leitura no meio digital são as novas possibilidades de inclusão do leitor no texto. Como a digitalização opera a virtualização do texto, um autor versado nas possibilidades do meio pode criar ambientes que são determinados a partir da interação. Tomarei um jogo eletrônico novamente. O popular SimCity carrega um texto complexo no bojo de suas regras. Neste jogo, o usuário é convidado a desenvolver uma cidade. Ele toma decisões típicas de planejamento urbano e enfrenta as repercussões sociais de seus atos. Sua cidade pode crescer e prosperar ou empobrecer e ser abandonada por seus habitantes. Ele pode ser elogiado ou execrado pelos jornais locais. Obviamente, todas estas possibilidades foram previamente escritas pelos autores do jogo, mas é somente a inserção do leitor / jogador que atualiza o texto. Ao comentar esta característica do texto digital, Janet Murray conclui que a leitura no meio digital constitui uma experiência de imersão [1997]. O exemplo mais potente desta nova inserção do leitor no texto são os MUD. Nestes ambientes, o leitor possui uma persona que se faz presente no texto coletivo que cria o ambiente. Para ler tem que agir. Se ao entrar em uma sala, peço para “ver” o que lá existe, posso descobrir uma caixa que necessita ser “aberta” para ser explorada. Além desta operação ativa que me projeta no texto, posso ser surpreendido por um inexperado “ataque”, que o criador / programador da sala, programou para ocorrer sempre que alguém tentar “abrir” a caixa. Minha persona está no texto.