Operações do digital: a Digitalização

No imbricamento entre o PC e a CMC que funda a cultura digital, se encontra a operação de digitalização. Nicholas Negroponte faz da afirmação redundante “bits são bits” o título da primeira parte de seu livro Being Digital [1995], para reforçar a idéia de que as palavras, imagens e sons que nos são apresentados pelas interfaces do computador são, antes de mais nada, conjuntos de zeros e uns. É a digitalização que viabiliza três características marcantes das manifestações da cultura digital: a multimodalidade, o hipertexto e a simulação.

Escolho o termo multimodalidade e não multimídia para não incorrer na confusão conceitual exposta por Lévy em Cibertura [1999:61-66]. Bits são “misturáveis”, portanto textos, fotos, vídeos e música podem fazer parte do mesmo bit stream, seqüência de bits. A digitalização permite construir discursos que sensibilizam múltiplos sentidos, ou o que Lévy chama de “modalidades perceptivas”. Embora a multimodalidade do discurso digital esteja condicionada a limites impostos tanto pelas funcionalidades da interface quanto pela eficiência da rede, as manifestações da cultura digital pressupõem a possibilidade de conectar imagens, sons e textos.

Porém, não devemos deixar de notar que o processo de digitalização também potencializa o discurso multimídia, entendido como aquele que se produz utilizando diferentes mídias, como a TV, o rádio, o computador, ou o livro. A junção das linguagens sonoras, visuais e verbais é um fator de aceleração prepoderante do movimento de convergência das mídias [Santaella 2002]. Porém, o discurso multimídia não é resultante exclusivo da digitalização. O livro Maciste no Inferno de Valêncio Xavier [1983] demonstra muito bem este ponto ao criar na velha mídia do livro impresso um discurso no qual combina imagens de cinema, pautas musicais e texto linear para construir uma narrativa intersígnica. Outro exemplo não digital é a videoarte que desde o início abusou da colagem, valendo-se de materiais advindos de diferentes mídias como a televisão, o cinema e a fotografia [Matuck 1995]. O que o processo de digitalização opera é a facilitação destes amálgamas. Quando a televisão, o rádio, o jornal se convertem para o suporte digital, a colagem se torna mais transparente.

Em relação ao hipertexto, é necessário tomar o mesmo cuidado de perceber a anterioridade do mecanismo do hipertexto em relação à digitalização. Diversos mecanismos analógicos, que provocam o encadeiamento não linear da leitura, podem ser arrolados como precursores do hipertexto digital. Alguns exemplos são: os sistemas de remissão em notas de rodapé de um livro, as referências cruzadas de uma enciclopédia ou o sistema de mapas de um guia de ruas.

A grande novidade que a digitalização invoca é a remissão automática. O suporte digital permite a navegação instantânea entre as referências não lineares de um hipertexto. A velocidade da remissão automática altera tanto a leitura como a escritura. O hipertexto permite a construção de discursos não lineares cuja leitura tem que lidar com múltiplas possibilidades de percurso.

A operação de remissão permite modificar o discurso. Liberto da linearidade o texto pode ser construído a partir de elementos atômicos que se entrelaçam em percursos múltiplos. Cada um destes elementos adquire novas significações através da conexão com outros elementos. Se considerarmos que a digitalização viabiliza a utilização de elementos multimodais, vemos o hipertexto transformar-se em hipermídia [Santaella 2002:Capítulo VIII]. Neste cenário, constituem-se as bases de uma nova linguagem que implica um leitor imerso em discursos que exigem a sua participação interativa [ibidem]. Neste sentido, como aponta Steven Johnson, os links, elementos básicos do hipertexto digital, são a característica mais marcante do ciberespaço:

Peça a qualquer usuário da Web para lembrar o que primeiro o seduziu no ciberespaço; é pouco provável que ouça descrições rapsódicas de uma figurinha animada rodopiando, ou de um clipe de som fraco e distorcido. Não, o momento de eureka para a maior parte de nós veio quando clicamos em um link pela primeira vez e nos vimos arremessados para o outro lado do planeta.” [2001:83]

Esta descrição não denota somente o potencial da hipermída, também aponta para a segunda operação fundamental do imbricamento entre o PC e a CMC: a conectividade das redes. Porém antes de tratar deste tema, vamos à terceira característica implicada pela digitalização: a simulação.

Novamente, a digitalização não inaugura o fenômeno, mas transforma fundamentalmente sua potência. O teatro já funcionava como uma simulação do real na Grécia antiga. Uma simulação analógica foi a fonte de inspiração do projeto da ARPA, a mesma que patrocinou a criação das bases da Internet, responsável pelo nascimento de boa parte daquilo que erroneamente, como vimos, é chamado de multimídia.

Impressionados com o sucesso dos israelenses no resgate em Entebe, no ano de 1976, o Departamento de Defesa americano encomendou à ARPA o desenvolvimento de meios eletrônicos de treinamento que permitissem a suas tropas o mesmo nível de aptidão. O sucesso em Entebe havia sido garantido pela simulação do ataque em uma reprodução detalhada do aeroporto, no qual os passageiros estavam aprisionados. Porém, a reconstrução física de ambientes seria muito cara e demorada. A multimídia, ou melhor dizendo, as interfaces de multimodalidade nasceram do esforço de reconstrução de ambientes a partir da combinação de sons, imagens e movimento. [Negroponte, 1995:65-67]

No caso das simulações, a diferença de potencial que o digital opera é de outra natureza. Não estamos falando de uma remissão que poderia ser feita com menor rapidez e eficiência por meios analógicos, ou de uma colagem de diferentes estímulos sensoriais que passa a ser facilmente exeqüível. As simulações que o ambiente digital permite são efetivamente impossíveis no mundo analógico. As capacidades de cálculo do computador contribuem para isto de duas formas: aumentando o número de variações que podem ser calculadas e instrumentalizando um conjunto maior de perspectivas sobre a simulação.

O computador excede a possibilidade humana em relação à simulação. Fugindo de um exemplo científico: é simplesmente impossível para o homem simular todas as variações de cenários, para todos os movimentos possíveis de um jogador, em uma arena como as do jogo eletrônico Quake. O homem conhece todas as equações, é ele que opera sua digitalização, mas a eficiência de um esforço humano-analógico impossibilita não só a conclusão do cálculo, como a produção da imagem.