Introdução
A decisão de escrever sobre a interavitidade no âmbito da cultura digital faz parte de meu percurso pessoal de encantamento com revolução digital. Embora possa recorrê-lo aos meus primeiros passos com computadores no início da década 80, é a descoberta dos bulletin board systems (BBS), há dez anos, que inicia este encantamento com as possibilidades abertas pela Internet. Na verdade, as BBS ainda não podiam prover acesso à rede das redes no início dos anos 90. Elas nos conectavam a outras redes como a Bitnet, a Fidonet e a Usenet, mas já permitiam uma experiência premonitória da potência do email, dos newsgroups, e do acesso a documentos digitais arquivados a distância.
A experiência com as BBS tinha sabor de antepasto. Antes da regulamentação do provimento de acesso comercial em 1995, as únicas alternativas de conexão à Internet no Brasil eram as universidades e a BBS Alternex do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômica - Ibase, ONG fundada pelo sociólogo Betinho, que havia viabilizado acesso à Internet, em função de suas atividades de apoio à conferência ECO-92, no Rio de Janeiro [Ercilia 2000]. No final de 1994, afiliei-me ao Ibase, instalei o browser da Netscape e realizei minhas primeiras visitas à World Wide Web (WWW).
Em uma destas incursões, encontrei referências ao recém lançado livro de Nicholas Negroponte, diretor do importante instituto de pesquisa Media Lab do Massachusetts Institute of Technology, Being Digital [1995]. A leitura deste livro competou a operação de encantamento. A otimista visão do impacto que a revolução digital teria em nossas vidas cotidianas, composta por Negroponte, era fascinante. Continua sê-lo, mesmo após quase oito anos, durante os quais as promessas da vida digital foram extensamente propagadas pela mídia, largamente abusadas por empreendores ansiosos em enriquecer na corrida ao ouro virtual do final dos anos 90 e duramente contestadas em face do debacle das bolsas em 2000.
O livro de Negroponte dirigiu-me a leitura da revista Wired, o que se tornou um hábito que mantenho desde setembro de 1995, e esta levou-me até Howard Rheingold e seu livro The Virtual Community [1994]. Este outro relato das possibilidades que o ciberespaço engendrava, aliado a vários e excelentes artigos da Wired, comuns nos primeiros anos da revista, raros atualmente, alimentaram o encantamento e começaram a despertar questionamentos pessoais que acompanhavam uma progressiva compreensão das conseqüências da revolução digital.
Em 1996, a curiosidade intelectual encontrou a prática professional. Desde 1991, estava envolvido com televisão por assinatura e, naquele momento, trabalhava para a holding das Organizações Globo que gerenciava seus negócios no setor. Fui convidado a gerenciar o projeto que deveria desenvolver o produto de acesso à Internet em banda larga, a ser lançado pelas operações de televisão a cabo da empresa. Durante dois anos, tive a oportunidade de aliar pesquisa e prática na investigação das possibilidades da revolução digital. A atividade de desenvolvimento de produto permitia que muito do meu tempo fosse dedicado a leituras de relatórios e newletters que privadamente não teria condição de pagar, assim como diversas viagens, congressos e contato com consultores internacionais. No lado da prática, coordenei todas as atividades que levaram ao lançamento do produto Virtua em operação piloto na cidade de Sorocaba, no início de 1998 (desliguei-me da empresa dias antes do início das atividades), o que incluiu testes da tecnologia de cable modem e desenvolvimento de sites protótipos que exploravam as possibilidades da banda larga, entre outras atividades.
Foi neste período que dedici engajar-me ao mestrado do Programa de Comunicação e Semiótica, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Durante os anos de 1997 e 1998, tive a oportunidade de levar meus questionamentos pessoais ao encontro do pensamento acadêmico em disciplinas, dentre os quais se destacam: dois cursos ministrados por meu orientador, professor Rogério da Costa, um que colocava em discussão a inteligência coletiva e outro focado na epistemologia do tempo; outros dois com o professor Philadelfo Menezes, o primeiro que investigou a existência de um novo sentimento religioso no bojo da globalização e, um segundo, que discutiu o texto e a cultura digital; e um outro conduzido pelo professor Sérgio Bairon que convidou à atuação prática - teórica na construção de roteiros em hipermídia.
Já na primeira monografia escrita para o programa de mestrado, a opção pelo estudo da interatividade foi configurada. Este trabalho apresentava a proposição das dimensões de interatividade e o incentivo do saudoso professor Philadelfo Menezes levaram-me a transformar esta proposição na base do meu projeto de pesquisa. Em 1999, trabalhando sob a orientação de Rogério da Costa, iniciei o empreendimento que deveria produzir esta dissertação até o final do mesmo ano.
Esta trajetória foi interrompida por um evento de minha vida profissional. Em outubro de 1999, fui convidado pelo presidente da empresa em que trabalhava a montar um novo negócio, aproveitando meus conhecimentos sobre a Internet. Também queríamos embarcar na corrida do ouro virtual. Decidimos criar um serviço que deveria oferecer a pequenas e médias empresas as vantagens de eficiência que a Internet viabilizava para as grandes. A missão era criar uma comunidade de empresas, a partir de ferramentas que o mercado apelidou de B2B (business to business). Para tornar uma longa e tortuosa história curta, durante três anos mergulhei de corpo e alma neste projeto que infelizmente ainda não logrou estabelecer uma comunidade pulsante de empresas, apesar de ter atraído milhares delas e haver dado margem ao desenvolvimento de diversos aplicativos.
Neste período, durante o qual afastei-me do programa de mestrado, os desafios profissionais levaram-me à discussão e à prática com vários dos mecanismos de interatividade que analiso nesta dissertação. Chegamos tarde à corrida do ouro virtual e com o estouro da bolha especulativa em abril 2000, as dificuldades que se abateram sobre as empresas do mercado de serviços de Internet, proporcionaram uma vida dura e um rico aprendizado. As gloriosas promessas, que haviam sido extensamente exploradas por empreendedores ávidos em levantar fortunas na bolsa e reverberadas por jornalístas facilmente encantáveis por uma boa manchete, deram lugar ao ceticismo. Revolução digital e nova economia passaram a ser tratadas como parte de um embuste criado para inflar, absurdamente, o valor das empresas pontocom.
Certamente, houve muito exagero e várias certezas que já tive me abandonaram, porém continuo absolutamente encantado com as possibilidades do ciberespaço. Não tenho a menor dúvida de que vivemos os primeiros anos de uma profunda revolução. Como diz Lúcia Santaella:
“Propiciada, entre outros fatores, pelas mídias digitais, a revolução tecnológica que estamos atravessando é psíquica, cultural e socialmente muito mais importante do que foi a invenção do alfabeto, do que foi também a revolução provocada pela invenção de Gutemberg. É ainda mais profunda do que foi a explosão da cultura de massas, com os seus meios técnicos mecânico-eletrônicos de produção e transmissão de mensagens. Muitos especialistas em cibercultura não têm cessado de alertar para o fato de que a revolução teleinformática, também chamada de revolução digital é tão vasta a ponto de atingir proporções antropológicas importantes, chegando a compará-la com a revolução neolítica.” [2002:389]
Sob esta perspectiva, era mesmo estranho que as transformações provocadas pelo digital enfrentassem tão pequena resistência, em especial, quando comparadas às críticas e ao ceticismo ocasionados pela invenção da imprensa. Seria mais normal que uma revolução destas proporções criasse diversas rupturas nos meios de produção, levando a processos de destruição de riqueza e não a uma vertiginosa valorização dos ativos motivadas pelo que Alan Greenspan, presidente do Federal Reserve americano, definiu como “exuberância irracional”. As promessas da revolução digital são válidas, porém elas vão se instalar de maneira muito mais problemática do que se supôs durante a corrida do ouro e, como todas as revoluções que envolvem grandes transformações sócio-culturais, vão tomar o período de gerações para que todo seu potencial se realize.
Desde de o início, tive bastante claro que no bojo da multifacetada revolução digital o que me interessava estudar era a Internet como fenômeno de comunicação. O que mais me encantava eram as possibilidades interativas do meio, sua capacidade de colocar em diálogo múltiplos agentes afastados entre si no contínuo do tempo-espaço. Nos cursos junto ao programa de Comunicação e Semiótica e durante a pesquisa que empreendi, pude confirmar que a interatividade constituia um tema relevante não somente por sua centralidade diante da cultura digital nascente, como também pela carência de análises que a tomassem como objeto primário.
Ao longo das leituras, das disclipinas e da prática profissional, várias perguntas interpunham-se. Existia uma nova linguagem? Formava-se uma nova cultura? Configurava-se uma nova forma do pensar? Havia veracidade na proposição de uma inteligência coletiva? Constituiam as comunidades virtuais organizações socias efetivas? Estas questões foram sendo aclaradas em textos nos quais a interatividade fazia-se sempre presente. Falava-se da inserção interativa do leitor imersivo [Santaella 2002], da cultura constituída por uma audiência que participa [Costa 2002], da inteligência colocada em fluxo coletivo pela interação [Lévy 1999], das comunidades que nascem em função da interação social contínua no ciberespaço [Rheingold 1994] e de diversas tecnologias e suas conseqüências quase sempre caracterizadas pelo potencial de interatividade. Ficava claro que havia uma cultura digital e que a Internet era um artefato cultural [Hine 2000] que tinha na interatividade sua fonte de potência.
A pretensão desta dissertação é, portanto, construir um entendimento do objeto interatividade dentro do contexto específico da cultura digital. A maior dificuldade que isto oferece é isolar a interatividade do discurso. Por exemplo, não interessam as manifestações da arte digital em si, mas, sim, como ocorrem as interações dos agentes da comunicação entre si, através das mensagens que esta compõe. A principal indagação reside em como funcionam os mecanismos que nos propocionam a interatividade no meio digital. Quais as características que determinam sua potência e, por conseguinte, contituem o meio digital como um território transformador.
Além da extensa prática nos âmbitos profissional e pessoal com diversos mecanismos de interatividade que habitam o ciberespaço, os diversos relatos e análises que constituem a bibliografia desta dissertação informaram a construção de um entendimento particular do objeto interatividade. Trata-se de uma proposta de abordagem analítica que pretende instrumentalizar a compreensão, a aplicação e a construção de mecanismos de interatividade no meio digital. Este texto oferece-se como uma ferramenta na medida que procura caracterizar a interatividade na cultura digital, a partir de um conjunto de dimensões dentro das quais uma série de vetores criam as possibilidades de interação entre os agentes e as mensagens no ciberespaço.
O texto parte da caracterização de três conceitos centrais à investigação: a cultura digital, a interatividade em si, e a interface que a possibilita. O primeiro capítulo serve para expor minha compreensão destes conceitos à luz das leituras realizadas, que não se pretendem panorâmicas do estado da arte, mas, sim, referênciais para a construção da proposição central deste trabalho, desenvolvida no capítulo seguinte. A discussão conceitual tem por objetivo demitar a pesquisa ao configurar o fenômeno, seu território e seu operador.
São quatros as dimensões da interatividade que apresento no segundo capítulo. Elas remetem ao papel do agente, do sentido, do tempo e do espaço. Nessa etapa da dissertação, fundamento a configuração conceitual das dimensões e proponho que dentro delas existem os vetores que dão luz à potência da interatividade na cultura digital. Discuto as dimensões e seus vetores um a um, apresentando-os em face dos mecanismos de interatividade específicos como o email, a Web e as conferências eletrônicas.
O terceiro capítulo, dá conta de aplicar esta proposição conceitual como método de análise. À guisa de exemplo da viabilidade do método, o quadro das dimensões da interatividade é aplicado em três demonstrações analíticas, eleitas a partir da distribuição dos mecanismos da interatividade em três grupos, segundo objetivos distintos: a viabilização de espaços de publicação, a potencialização de diálogos, e a formação de comunidades. As principais tecnologias que operam a interatividade nestes três grupos são apresentadas em função de seus aspectos mais relevantes e as dimensões são discutidas vis a vis a suas funcionalidades.
Na conclusão, discuto a utilidade e as limitações da análise proposta. Na tentativa de oferecer continuidade para a pesquisa da interatividade aqui empreendida, elenco duas indagações problemáticas em face ao proposto método de análise. Por fim, rapidamente relato as indagações pessoais nascidas durante o projeto que esta dissertação encerra e as possibilidades de caminhos intelectuais que elas me apresentam para o futuro.
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